terça-feira, 10 de abril de 2007

COISAS DA CIDADE


O dia, a noite, a chuva.

O céu azul, a estrela azul, a chuva azul.

E toda água lavando o escuro, o claro do muro.

O tempo não se constrói com tijolos, azulejos, pisos.

O tempo é um desejo que nasce, cresce e morre feito dia, noite, chuva.
A chuva da madrugada, os dedos do sol, o corpo da luva.

As curvas da estrada de asfalto animam o salto alto da prostituta.

Também a santa se encontra, a blusa aberta, nua, vil.

O Brasil tem uma floresta por filhos quadrados, felizes, sábios, imbecis.

A força motriz das favelas gerando lágrima e sonho.

E a dicotomia partida por tiros infantis.
Puros. Impuros.

Aplausos pesados,às pressas, metralham de aço a raiva e o amor.

O fuzil é uma ave que acorda manhãs.

Os galos cantam apenas o medo.

Desesperado silêncio.
No caleidoscópio dos morros a vida vai de viés, avessa à navalha e ao vermelho.

A cidade sobe com a maré e desce entorpecida pelas telhas, chaminés, mastros de bandeiras.

É tudo água, luz, estrela.

A cidade aborta e vinga o fracasso e o sucesso.

Espaço, espelho, espécie.

A cidade ginga. Gigante bailarina.

A cidade finda liberdade, cria esperança, espalha.

As sirenes enlouquecem, acidente, assalto, fábrica, fumaça, cortina, vidraça.

Os anjos pedem mais asas, petróleo, Coca-Cola, cachaça.
A mídia destorce, retorce, procura a farsa da notícia, polícia, bandido.

No alto do edifício a antena parabólica capta, adapta, enfatiza.

O mundo cor-de-rosa, o verso, a prosa.

A poesia precisa da mistura, fissura, ferida.

As margaridas na calçada, a vida, a razão, a loucura.

A praça iluminada, a namorada, a avulsa.
Na versão do poeta, a meta, a metáfora por dentro e por fora.

E a âncora da nave se parte, partilha, racha.

O automóvel se move, movimenta a cidade, o morro.

O semáforo liga, desliga, pisca.

A tensão é imensa, poste, pedestre.

A cigana sem sorte, a criança sem destino, o futuro sozinho.

As esquinas se dobram, os sinos, os corpos.
Copacabana, anos, semanas.

Florianópolis, peixes, Peixotos.

Outras cidades são princesas, rainhas, musas.

Mas a cidade que me pariu, não sabe partir de mim, repartir o título, o butim, os bares noturnos, os fregueses, as trocas.

A mercadoria tem preço, o humano vai de graça, vontade.

Diz que tudo é segredo na cidade, os Chicos, os Buarques, os Zininhos.

Também a maldade não se publica, vai por debaixo da porta, envelope.

O papel crepita, pálpebras explosivas, fritura.
O inverno sem dono, abandono, pontinho.

A cidade abraça, concreto, argamassa.

Cabelos de fios elétricos, árvores ao vento, meio-fio inteiro, o canteiro, a via, o lixeiro, agonia verde.
A cidade tem um timbre metálico, bigorna, trombone.
O metrô que se esconde, o ônibus, a moto, o corpo que se mostra.

A música dos ambulantes, das ambulâncias, das conversas.

A cidade se faz obtusa, ângulos, escândalos.
A faixa de segurança atropela dúvidas e grávidas.

Nasce uma outra cidade a cada dia, a cada noite, a cada chuva...A cidade é a paixão mais profunda entre a carne e a pedra, entre a memória e o desejo.

A cidade registra sentidos de mão dupla e multiplica o que não faz sentido.

É o juízo inicial do indivíduo, labor interno, invisível...A cidade me falta.

E no entanto, só ela tem o que preciso.

(Charles Silva)


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