terça-feira, 10 de abril de 2007

Crônica dos dias que correm


O que foi feito com os dias compridos das crianças?!

Quando eu era pequeno, mesmo quando acordava tarde, os dias eram fontes inesgotáveis de ações e pensamentos. Tudo cabia com folga nos dias lentos que acendiam a minha infância.
Dava para dar muitas voltas no mundo inteiro.

O mundo inteiro era a minha rua e a rua onde minha avó morava.
Numa única manhã, eu podia fazer o que hoje levaria meses.
Eu brincava com Samantha, uma vira-lata pequena e alegre, guarda-costas inseparável que, se não me protegia dos perigos reais, era meu dragão protetor no universo que eu inventava. Depois de alegrar Samantha, “viajava” de bicicleta, pois no final da minha rua ficava a cidade de São Paulo, com seu trânsito congestionado, sua gente educada, que jamais se esquecia de agradecer a viagem segura de volta promovida por mim.

De São Paulo, seguia imediatamente para o Rio de Janeiro, entrava no Maracanã lotado, o Zico me dava a camisa dez e ficava com a oito, ao meu lado. Ah, como era emocionante ver a torcida rubro-negra gritando meu nome: “Charles Maravilha, nós gostamos de você!” O juiz apitava o início da partida, Zico tabelava comigo, eu driblava dois adversários, devolvia pra ele, que, habilidoso, passava a bola pelo meio das pernas do zagueiro e cruzava na área pra eu completar de cabeça, de voleio, de bicicleta, ou então, matar no peito, driblar o goleiro, estufar a rede e correr para a torcida carioca, enlouquecida com o craque que eu era!

Mais tarde, no vestiário, eu brincava com as bolhinhas de sabão que escorriam pelo azulejo do banheiro. Minha mãe batia à porta, dizia que era pra economizar luz, me apressar com o banho, mas o que era pressa naqueles tempos? Quando os dedos estavam murchos, era a hora de desligar o chuveiro. Então, deslizava a toalha sobre meus vinte e poucos quilos e enquanto aguardava meu pai para o almoço, observava curioso o tráfego eterno das formigas, que por um esforço conjunto com o Governo Federal, abriram a BR Fome Zero, que ligava a cozinha da minha mãe ao castelo suntuoso onde moravam dezenas de milhares de saúvas.

Férias de três meses, para a criança que eu era, equivalia mais ou menos a três anos-adultos com sol, seis com chuva! Os minutos imitavam as formigas em ordem e demora. Mas as formigas-minuto não chegavam a lugar algum, porque ficavam dando voltas e mais voltas no mesmo lugar. Por isso, o formigueiro-relógio não prosperava como o das saúvas. O sol fazia com as nuvens daquelas tardes um âmbar de ternura tão profunda que apenas os avós conseguem reproduzir quando olham seus netos crescerem sob a luz tênue dos fins de tarde que ainda se despedem... Adeus, Souza, Silva e Silveira! Adeus Fantin, Girardello, Orofino! Adeus Gómez, Canclini, Barbero! Adeus Bourdieu, Morin, Deleuze! Adeus crianças de outrora!

A grande novidade do final do século XX não foi a Engenharia Genética, a exploração espacial, a Física Quântica. Também não foram as tecnologias, Telemática, Robótica, Informática! O que marcou de forma definitiva a humanidade neste período foi o surgimento de uma nova família: os “Não Tenho Tempo!”, assim mesmo, com exclamação no final. Dona de todos os cartórios de registro espalhados pelo mundo inteiro, essa família promoveu uma verdadeira revolução na árvore genealógica de quase todos indivíduos inseridos nas sociedades capitalistas. Foi com muito estranhamento que recebi o telefonema de meu pai dizendo que não viria para meu aniversário. E se o sobrenome do meu pai mudou, o meu haveria de mudar também. Foi assim que comecei a perder estréias de filmes, peças teatrais, lançamentos de livros, simpósios, defesas de mestres e doutores. É mesmo assustador ver a minha nova assinatura na carteira de identidade: Charles Não Tenho Tempo!

Fiquei pensando nos problemas oriundos de relacionamentos sangüíneos entre indivíduos de uma mesma família. Mas o tempo é pródigo em resoluções: à nova família, novas famílias. Foi na Biblioteca que me dei conta de que, junto aos livros de “Gilka Não Tenho Tempo!”, fulguram também os livros da “Maria Isabel Vamos Combinar Qualquer Hora!”, da “Ingrid Se Der Eu Vou!”, da “Mônica Qualquer Coisa A Gente Se Liga!”; enfim, um fenômeno curioso que merece ser pesquisado.

E a coisa parece acelerar de tal maneira que não há mais garantia alguma de que os filhos recebam o sobrenome dos pais. Minha namorada, “Raquiane Me Esqueci Completamente!” e sua filha, “Juliane Deixa Aí Que Depois Eu Faço!”, atestam essa anomalia. Também os irmãos não têm mais o mesmo sobrenome. Minha irmã agora se chama “Denise Não Vai Dar De Jeito Nenhum!” e meu irmão, “Rodivelson Como É Que Eu Posso Estar Em Dois Lugares Ao mesmo Tempo?!”

Talvez algumas crianças continuem compondo dias compridos. Talvez tenham tempo para dar várias voltas ao mundo inteiro numa única manhã. Talvez algumas dessas crianças ainda vejam nas formigas uma forma de entretenimento. A verdade é que eu cresci e me tornei mestre em Educação. Essa noite sonhei que havia aberto um jardim de infância. Como sempre faço com as coisas que amo, quis ver esse jardim de longe, por isso atravessei a rua e, num misto de felicidade e tristeza, observava as letras coloridas que compunham o nome da minha empresa: Jardim Calma, Pai, Calma, Mãe!


Charles Silva

LAGOA DA CONCEIÇÃO


salobro

que um corpo

é o tempero do outro

molhado

que o lábio

é um espelho pro jogo

desejo

que o tempo

é um ocaso rosado

concreto


que a lenda

é o avesso da ponte

suave

que a vela

é o brinquedo da costa


tecido

que a renda

é o sorriso da barra

disforme

que a margem

é o esboço do canto

profundo

que a alma

é o mistério da ponta


crescente

que a lua

é um poema que foge


saudade

que a água

é a palavra que move


(Charles Silva)

Turismo na ilha


Antigamente, aqui na ilha de Florianópolis, quando minha avó queria exprimir o impossível, quando ela queria dizer que a idéia de alguém era descabida, ilógica, desvairada, insana, ela perguntava ao seu interlocutor: “Escuta aqui, tu queres colocar a Catedral dentro da São Francisco?”
São Francisco, para quem não sabe, é uma igreja pequenina comparada à Catedral.

Para os habitantes de Florianópolis, o turismo não representa apenas uma fonte de renda.
Ele é motivo também de muitos problemas, como o aumento do custo de vida, a degradação do meio-ambiente, o aumento da produção de lixo, a falta de água à população, o congestionamento de trânsito de pessoas e de veículos em todas as vias da cidade.
Cidade, para quem não sabe, é o local onde habita o cidadão, ser que tem direitos e deveres, mas que quase sempre os desconhece.

Quando o verão se aproxima, os hotéis, as empresas de turismo e os restaurantes ocupam grande destaque na mídia local.
As páginas dos jornais ficam bagunçadas com inúmeros anúncios que não combinam na forma, na cor, no tamanho e nos preços.
A bagunça dos anúncios também faz turismo, pois migra subitamente das manchetes aos lares, resultando em novos problemas às inúmeras famílias que não estão ligadas ao turismo, às redes de hotéis e à gastronomia.
Mas os problemas internos da população não estão na mídia.
Mídia, para quem não sabe, é um meio de formar e deformar realidades.
O turismo, na nossa cidade, precisa levar em conta não apenas o bem-estar dos turistas, mas sobretudo o bem-estar dos moradores!


Também a geografia da cidade deveria ser respeitada, pois uma ilha de beleza exuberante como a nossa deveria ser preservada, tombada como patrimônio cultural, ao invés de ser explorada pela iniqüidade do turismo predatório!!! Predatório, para quem não sabe, é fazer do meio-ambiente um ambiente inteiro de desordem e caos.

Aliada à preservação da ilha que habitamos e ao tombamento de suas belezas naturais, dever-se-ia frear também o setor imobiliário e impedir crimes ambientais como ocorreram na Praia Brava, no Costão do Santinho e no Shopping Iguatemi.
Uma ilha precisa controlar o seu turismo, sob pena de perdê-lo!

Será que as (des)autoridades locais ainda não entenderam que não dá pra colocar a Catedral dentro da São Francisco?

Conclamo aos florianopolitanos a discutirem o turismo na ilha, mesmo porque, turismo, na ilha de Florianópolis, para quem não sabe, é uma festa de crimes, burrice, conivência e descaso!

Charles Silva

COISAS DA CIDADE


O dia, a noite, a chuva.

O céu azul, a estrela azul, a chuva azul.

E toda água lavando o escuro, o claro do muro.

O tempo não se constrói com tijolos, azulejos, pisos.

O tempo é um desejo que nasce, cresce e morre feito dia, noite, chuva.
A chuva da madrugada, os dedos do sol, o corpo da luva.

As curvas da estrada de asfalto animam o salto alto da prostituta.

Também a santa se encontra, a blusa aberta, nua, vil.

O Brasil tem uma floresta por filhos quadrados, felizes, sábios, imbecis.

A força motriz das favelas gerando lágrima e sonho.

E a dicotomia partida por tiros infantis.
Puros. Impuros.

Aplausos pesados,às pressas, metralham de aço a raiva e o amor.

O fuzil é uma ave que acorda manhãs.

Os galos cantam apenas o medo.

Desesperado silêncio.
No caleidoscópio dos morros a vida vai de viés, avessa à navalha e ao vermelho.

A cidade sobe com a maré e desce entorpecida pelas telhas, chaminés, mastros de bandeiras.

É tudo água, luz, estrela.

A cidade aborta e vinga o fracasso e o sucesso.

Espaço, espelho, espécie.

A cidade ginga. Gigante bailarina.

A cidade finda liberdade, cria esperança, espalha.

As sirenes enlouquecem, acidente, assalto, fábrica, fumaça, cortina, vidraça.

Os anjos pedem mais asas, petróleo, Coca-Cola, cachaça.
A mídia destorce, retorce, procura a farsa da notícia, polícia, bandido.

No alto do edifício a antena parabólica capta, adapta, enfatiza.

O mundo cor-de-rosa, o verso, a prosa.

A poesia precisa da mistura, fissura, ferida.

As margaridas na calçada, a vida, a razão, a loucura.

A praça iluminada, a namorada, a avulsa.
Na versão do poeta, a meta, a metáfora por dentro e por fora.

E a âncora da nave se parte, partilha, racha.

O automóvel se move, movimenta a cidade, o morro.

O semáforo liga, desliga, pisca.

A tensão é imensa, poste, pedestre.

A cigana sem sorte, a criança sem destino, o futuro sozinho.

As esquinas se dobram, os sinos, os corpos.
Copacabana, anos, semanas.

Florianópolis, peixes, Peixotos.

Outras cidades são princesas, rainhas, musas.

Mas a cidade que me pariu, não sabe partir de mim, repartir o título, o butim, os bares noturnos, os fregueses, as trocas.

A mercadoria tem preço, o humano vai de graça, vontade.

Diz que tudo é segredo na cidade, os Chicos, os Buarques, os Zininhos.

Também a maldade não se publica, vai por debaixo da porta, envelope.

O papel crepita, pálpebras explosivas, fritura.
O inverno sem dono, abandono, pontinho.

A cidade abraça, concreto, argamassa.

Cabelos de fios elétricos, árvores ao vento, meio-fio inteiro, o canteiro, a via, o lixeiro, agonia verde.
A cidade tem um timbre metálico, bigorna, trombone.
O metrô que se esconde, o ônibus, a moto, o corpo que se mostra.

A música dos ambulantes, das ambulâncias, das conversas.

A cidade se faz obtusa, ângulos, escândalos.
A faixa de segurança atropela dúvidas e grávidas.

Nasce uma outra cidade a cada dia, a cada noite, a cada chuva...A cidade é a paixão mais profunda entre a carne e a pedra, entre a memória e o desejo.

A cidade registra sentidos de mão dupla e multiplica o que não faz sentido.

É o juízo inicial do indivíduo, labor interno, invisível...A cidade me falta.

E no entanto, só ela tem o que preciso.

(Charles Silva)


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